segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Crônica: "Lembra?"


Lembra?

Na apressada Avenida Paulista, no coração seco, cansado e fumante de São Paulo, um pequeno bar próximo a Consolação ainda resiste o tempo, as baladas e os 6 imigrantes chineses que já o tentaram comprar para fazer uma pastelaria. Domingo, calmo, pacato, com as madames passeando seus cachorros-filhos em coleiras enquanto seus filhos-cachorros acordam de ressaca, dividem a calçada com torcedores indo para o estádio, namorados, turistas e malucos que fazem alguma peripécia bisonha por trocados.
No bar, três senhores, velhinhos, porém, lúcidos e saudosistas se encontram depois de 10 anos sem se verem.
Rodolfo. Um senhor magrelo, de bolsa de uma alça e cabelos ruivos já tomados pelo branco indicador capilar da idade tornando-os um laranja gasto. Músico, ainda mantinha a mesma voz e trejeitos Campo-grandenses de sua terra.
Tiago. Senhor pequeno, gordinho e risonho. Trabalhou muito tempo na televisão como editor de jornais e programas importantes. Mantinha seu jeito simplório e até caipira. Desacostumou com a tecnologia.
Felipe. Senhor mais elétrico, quase sem cabelos, um relutante habitante da Moóca. Paulista da gema e da clara. Com certeza seu pai estava na lista de convidados no Samba na casa do Arnesto, aonde foram e não encontraram ninguém. Antes de 1977 ainda chamava-se Phelipe.
Conversavam sobre a vida, o universo e tudo mais quando por incoerência do destino surge a pergunta:
- Nossa, mas faz quanto tempo que não nos falamos?
Pergunta Rodolfo, estranhando um Guaraná com açaí, e sem rolha.
- Verdade! Olha foi desde o casamento do Tiago, não foi?
- Mas eu casei cedo! Ainda nos vimos na formatura de sua esposa!
- Não! Não! Já me lembrei, foi no dia do atentado em Nova York, nos aviões, se lembra?
- Rapaz... um pouco antes raptaram a filha do Silvio Santos não é?
- Foi! E eu estava tocando no Lua Nua, me lembro!
- Mas isso foi quando morreu George Harrison! Foi depois...
- Ah então foi quando o Rafael comprou um DVD? Quando lançou, fomos na casa dele ver!
- Ah! Mas era CD ainda, ouvimos os Strokes lembra? ‘Last Nite’, aquilo era uma brasa!
- Rafael é fera! Devia vir! Mas então, foi depois, não foi quando vimos aquela corrida? Quando o Schumacher foi tetra?
- Não rapaz, foi na final com o Atlético Paranaense campeão!
- Não! Esse dia eu estava editando o incêndio no programa da Xuxa lembram? Haha!
- Sim! Mas foi no começo isso, nessa época você já estava na edição daquela Casa dos Artistas!
- Verdade! Bem lembrado, e você tinha um Baby Telesp ficou nervoso quando chegou a tal da Vivo! Haha!
- Putz! Mas não me lembro então quando foi...
- Acho que só o Rafael saberia hein... esse tem uma memória!
- Verdade, ele com certeza sabe! Pô! Cadê esse figura? Liga pra ele, pergunta e já chama ele mêu.
- Verdade vou ligar!
Com uma certa facilidade, Tiago de prontidão inicia a ligação para Rafael, enquanto Rodolfo acende um cigarro e Felipe pede mais uma tradicional cachaça.
- Alô?
- Alô, “favôr” o Sr. Rafael...
- Sr. Tiago? É a Camila...
- Ô lindinha, tudo bom? Chama seu pai ai pra mim...
- Sr. Tiago... é... o senhor não se lembra, o meu pai faleceu.
- Menina! Verdade... você se lembra o dia do velório?
- Bom foi dia 29 de Dezembro, em 2001.
- Me desculpa Camilinha, fica com Deus, beijo.
Um silêncio similar ao encontrado pós-gol-contra entre os jogadores.
- Lembrei...
- Pois é... a última vez que a gente se viu foi no enterro do Rafael.
...
Os velhos habitantes continuaram ali, enquanto caía uma garoa fina, na apressada Avenida Paulista, no coração seco, cansado e fumante de São Paulo.